terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

CARTA DO ZÉ AGRICULTOR (NÃO DEIXE DE LER) VERDADE PLENA...

A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbosa Melo - foi escrita
por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em
direito sócio ambiental e empresário, diretor de Parque Nacionais e
Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de
Ecologia.


Prezado Luís, quanto tempo

Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado,
porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé
do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu
tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso
o sapato sujava.

Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era
eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia
da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era
mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar
leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você
lembra, né, Luis?

Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês.
Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar
puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus
amigos aí da cidade. Tô vendo todo mundo falar que nós da agricultura
familiar estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e
tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade.
Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter
porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que
criaram aqui na vizinhança.

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma
maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que
fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai
se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né, Luís?

Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né .) contratei Juca,
filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada,
salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava
aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem
da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia
do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às
5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia
trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias
da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se
guiar pelo calendário?

Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o
beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como
encumpridar uma cama, só comprando outra, né, Luís? O candeeiro eles
disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz
elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do
Juca.

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que
fazer parte do salário dele. Bom Luís, tive que pedir ao Juca pra
voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos
sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito
certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque
botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra
delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do
trabalho para acudi-lo.

Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o
leite às 5 e meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da
estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover.
Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu
jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a
distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse
que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30
metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra
proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse
que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra
fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que
vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com
as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ia
mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato
da cidade. Ô Luis, ai quando vocês sujam o rio também pagam multa
grande, né?

Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com
a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital,
todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não
podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar
limpinho como os rios aí da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não
podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na
capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e
lixo boiando pra todo lado.

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né, Luís? Quem será? Aqui
no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar
árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa
que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar
a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui
no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o
fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar.
Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que
o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou
o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei
criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho
que desta vez vou ficar preso.

Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de
500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for
multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir
morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, ai tem
luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só
falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

Eu vou morar aí com vocês, Luís. Mais fique tranquilo, vou usar o
dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira.
Aqui no sítio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente
planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom
que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem
planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a
geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de
nós, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois
não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.

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(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em
dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas
alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário
entre o meio rural e o meio urbano.)

Pâmela Gallas Buche
Tecnóloga Ambiental.

Divulgue!